ISABELA BERROGAIN
O ano é 2004. Liana (Juliana Paes) é uma terapeuta ocupacional que, assim como milhões de mulheres ao redor do mundo, sonha em ser mãe. O desejo, no entanto, é minado por obstáculos — logo após descobrir que o marido, Tomás (Vladimir Brichta), é infiel, ela é estuprada por um conhecido e vive as consequências do trauma. A personagem descobre que está grávida de gêmeos, em um caso raro de superfecundação heteropaternal: um dos bebês é filho do marido, e o outro, do estuprador.
Desde o lançamento do trailer, a nova série da Netflix gerou burburinho nas redes sociais, devido à narrativa única e distinta. "Eu gosto de pesquisar outras personagens, então fiquei tentando pensar em referências para Liana, mas não encontrei muita coisa. Esse caso de superfecundação heteropaternal é um plot muito novo. Até mesmo em relação a abuso, violência sexual com maternidade envolvida, levar uma gestação fruto de abuso adiante, eu não encontrei nada semelhante", afirma Juliana Paes.
"A gente sempre tenta relacionar com coisas que já vivemos, mas como eu não vivi nada parecido, também foi uma descoberta para mim, uma pesquisa que foi acontecendo no set. Foi tudo feito de forma muito intuitiva, de fato eu coloquei o meu corpo e minhas emoções nesse papel", conta a protagonista. Repleto de cenas que abordam temas sensíveis — o estupro é exibido no primeiro episódio do seriado, Pedaço de mim é, segundo Juliana, uma produção que gera identificação com o público.
"A gente sempre teve muita consciência de que estaria abordando temas muito sensíveis, e acho que o grande barato de Pedaço de mim é que retrata situações que são muito relacionáveis com a audiência. Falar de maternidade, abuso sexual, estupro, são situações que muitas mulheres vivem, viveram ou estão vivendo neste momento", opina.
Na série, a passagem de tempo tem papel essencial para que os espectadores se conectem, entendam e se identifiquem com o drama de Liana. "Alguns processos são tão sutis, por isso eu gosto muito da forma como o tempo é abordado em cada um dos casos. Em relação à maternidade, fica muito claro que ela está tentando ser mãe há muito tempo, tentando dar conta desse desejo há muito tempo. Quase como se fosse uma obrigação social, que para formar uma família você precisa ter os filhos e o marido, aquele núcleo familiar bonitinho de comercial", detalha a atriz.
"Em relação ao abuso, o tempo que a Liana leva para entender esse ponto, eu acho muito sensível. Foi uma coisa que a gente discutiu enquanto estávamos fazendo a série. Nós tínhamos medo de dar ao público a sensação de que ela sabia o que tinha acontecido, mas estava reagindo de um jeito X, Y e Z. A gente tentou que ficasse muito claro que a própria vítima, dependendo de como é o caso de abuso, leva um tempo para perceber, para a ficha cair. Ela passa pelo processo de culpa, depois de se responsabilizar, depois da vergonha de falar sobre aquilo, de levar aquilo a conhecimento público", complementa a atriz.
Fora das câmeras, a intensidade do papel que Juliana protagonizou foi tanta que chegou a afetar a vida pessoal da atriz, fato inédito em mais de duas décadas de carreira. "Eu sempre fiz trabalhos de longa duração. Quando você faz uma novela, que tem cento e poucos capítulos, você consegue viver sua vida no set e viver sua vida em casa, dá para separar muito bem as duas coisas. O streaming, no entanto, acaba fazendo com que você mergulhe de um jeito mais vertical, mais denso", relata.
"Pela primeira vez, foi bem complicado para mim. Com esse componente de abuso na série, foi muito difícil voltar para o meu corpo sexual. Eu levei um tempo sem querer o toque. Não é que eu tenha vivido um trauma por meio da personagem, mas eu fiquei com o corpo sensibilizado durante um tempo após o fim das gravações. Foi a primeira vez que isso aconteceu, mexeu comigo de um jeito que não era consciente. Eu achei que estava só cansada, mas, depois que as filmagens acabaram e eu me afastei da personagem, em retrospecto, pude pensar se eu realmente não tinha ficado mexida nesse lugar do sexual", confessa a artista.
Novela x melodrama
Com a mesma essência das telenovelas nacionais, Pedaço de mim é apresentada pela Netflix como a "primeira série brasileira de melodrama" da plataforma. Conhecida por protagonizar famosos folhetins da Rede Globo, Juliana Paes explica a diferença entre os dois tipos de produção audiovisual.
"O estilo melodramático da série já está dado pelo plot. A diferenciação ocorre muito na parte prática, mas, no final das contas, o resultado é muito distinto. A gente gravou toda a série em cenários, a gente não fez nada em estúdio. Isso traz uma qualidade, uma realidade que é difícil de mensurar, mas que é vista", aponta a atriz.
Em relação à parte estética, Juliana define o melodrama como uma produção de "linguagem mais cinematográfica, mais sutil talvez". "A gente entende que em cenas em que a personagem está sofrendo, não necessariamente precisamos mostrar a personagem se debulhando em lágrimas. Mas, se ela está de costas, você entende que aquilo está acontecendo. É uma linguagem um pouco mais sofisticada, que não subestima o telespectador nem o entendimento dele da cena", descreve.
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