As cirurgias voltadas a indígenas intersexo e mulheres trans serão realizadas em três salas simultâneas por uma equipe de oito cirurgiões urológicos, selecionados pela Sociedade Brasileira de Urologia (SBU). Entre as pessoas que passarão pelos procedimentos, três são indígenas intersexo.
O evento clínico, que vai ocorrer em Manaus, no Amazonas, entre a próxima terça-feira (27) e o sábado (31), reunirá 150 profissionais e acadêmicos e ainda vai capacitar cerca de 150 profissionais do direito, serviço social e da saúde como médicos, psicólogos, enfermeiros, e fisioterapeutas, o que é considerado pelos organizadores um marco para a região.
“Acreditamos que o evento promoverá desenvolvimento regional, uma vez que o HUGV tem projeto de habilitação das cirurgias que serão realizadas na Jornada, podendo dar seguimento à demanda cirúrgica crescente em nosso Estado, tornando-se o primeiro hospital da Amazônia Ocidental a realizar cirurgias do processo transexualizador”, afirmou a presidente da comissão organizadora da Jornada, Conceição Maria Guedes Crozara, na nota da SBU.
Pacientes que querem fazer as cirurgias de conformidade e redesignação sexual, também denominadas de cirurgias do processo transexualizador, aguardam há muito tempo por esta oportunidade no SUS.
“Hoje o acesso a este tipo de cirurgia que envolve a reconstrução genital de pessoas com intersexo e pessoas trans ainda é muito restrito e as filas são enormes. Para intersexo principalmente há pouquíssimas pessoas fazendo porque a visibilidade é muito menor do que as pessoas trans. Essas pessoas ficam no limbo, invisíveis e sem conseguirem atendimento”, disse o urologista Ubirajara Barroso Jr, organizador da equipe cirúrgica de urologia da Jornada, referência em cirurgias de redesignação sexual e intersexo e chefe do Departamento de Cirurgia Afirmativa de Gênero da SBU, em entrevista à Agência Brasil.
“Eu não vejo, no geral, grandes ações para juntar experts e eles irem ao local para fazer uma demanda grande de cirurgias em pessoas que precisam, então, este é um evento que estamos dando uma assistência de qualidade em um lugar onde as pessoas estão precisando”, afirmou Barroso Jr.
A equipe do urologista é que fará o atendimento aos três indígenas intersexo, que passarão por procedimentos para adequação do órgão genital ao sexo biológico. “Numa cultura completamente diferente, que tiveram problemas com relação a isso, que andam nus e são expostos a genitália desde cedo”, comentou o médico sobre o que é para um indígena ser intersexo, que em alguns casos chega a ser expulso de tribos.
Pesquisa
A jornada vai servir também para os médicos coletarem informações da população indígena intersexo para publicação de um estudo científico pioneiro que envolverão também médicos residentes e alunos de graduação. “Como foi o reflexo de ter uma genitália atípica com características masculinas e femininas? O que é ter isso dentro de uma tribo indígena. Como foi a infância na tribo, o que sofreram ou não sofreram, como foi a vivência deles que são adultos e estão fazendo a cirurgia por decisão própria?”, disse o urologista, indicando alguns questionamentos que serão feitos na pesquisa.
Segundo o médico, até o momento não há informação de quantas pessoas intersexo indígenas vivem no Brasil. “Vou procurar me aprofundar lá, perguntando até para os próprios pacientes porque, às vezes, isso é familiar. Casos de intersexo tem uma chance maior de serem familiar. É possível que existam outras pessoas que a gente não saiba. Não sei quantos têm, nasceu mais um agora que ainda criança está sob investigação. Vou avaliar lá”, disse, acrescentando que é mais fácil realizar a cirurgia quando a pessoa ainda é criança, mas destacou que em situações em que há dúvida de identidade de gênero é melhor esperar para a pessoa decidir.
Como esses procedimentos ainda não são realizados na Região Norte, para o urologista, é fundamental a capacitação e familiarização das equipes locais nas técnicas estabelecidas e já definidas na tabela do SUS. “A gente vai qualificar um grupo de cirurgiões de lá para deixar um processo perene em que as pessoas possam a partir de então fazerem as cirurgias. Estamos descentralizando e replicando o conhecimento, nesse que é um procedimento que não é simples de fazer”, completou.
Nos quatro dias da Jornada, os participantes poderão acompanhar palestras e fazer minicursos direcionados à ampliação do conhecimento e da visibilidade sobre transexualidade e intersexualidade no âmbito do atendimento do serviço público de saúde.
O presidente da SBU, Luiz Otávio Torres, defendeu que o país precisa ser preparado para atender a essa parcela da população. Nesse caminho, a SBU tem intensificado nos seus congressos, treinamentos cirúrgicos para pessoas trans e intersexo e educação continuada online com estudos de caso para os associados.
“É urgente que nosso país esteja preparado e possa atender com qualidade e acolhimento as pessoas intersexo e trans. E é nossa missão enquanto sociedade de especialidade promover e participar ativamente dessas ações que promovem o conhecimento e a inclusão social”, afirmou Torres, em nota da entidade.
“Não se acham médicos em qualquer região que sejam qualificados para isso, que é uma cirurgia muito específica. São poucos cirurgiões no Brasil que realizam este tipo de procedimento”, completou Barroso Jr.
Intersexo
Anteriormente, a pessoa intersexo, era conhecido como hermafrodita, mas o termo hoje está em desuso por ser pejorativo. De acordo com a SBU, é uma condição biológica que atinge entre 0,5 e 1,7% da população mundial, “caracterizando-se por uma inconformidade entre o sexo cromossômico (XX ou XY) e o sexo fenotípico (vagina e pênis). Ou seja, a pessoa pode nascer XY e ter o órgão sexual feminino”.
Na visão de Barroso Jr, o caso da lutadora argelina Imane Khelif nas Olimpíadas de Paris que sofreu preconceito em suas lutas é um exemplo de como a sociedade ainda desconhece o intersexo.
Redesignação sexual
De acordo com a SBU, a redesignação sexual, também chamada de cirurgia genital afirmativa de gênero, é um procedimento que pode ser hormonal e/ou cirúrgico para adequar os órgãos genitais do sexo biológico do indivíduo ao gênero pelo qual o paciente se identifica.
O cirurgião especialista comparou a satisfação de uma pessoa trans após o procedimento a de um paciente de transplante renal. “Quando o paciente começa a urinar, se vê uma alegria na família, uma coisa espetacular. Quando se faz uma cirurgia de modificação genital afirmativa de gênero, é transformador na vida da pessoa que tem esse incômodo, essa agonia psicológica com o órgão genital. A demanda existe e é preciso que cada vez mais centros sejam habilitados a fazer”, pontuou Barroso Jr.
A demanda maior por cirurgia é de mulheres trans, o que para ele também é uma questão de desinformação. O médico exemplificou a portaria do SUS que trata do assunto. “As mulheres trans podem fazer a cirurgia, mas no caso dos homens é experimental. Nós fazemos aqui, na nossa Universidade, porque temos projetos de pesquisa, e não recebemos nada por isso. Isso já mostra um distanciamento do homem em relação à cirurgia”, esclareceu Barroso Jr. que foi o cirurgião responsável pela primeira cirurgia de redesignação sexual realizada na Bahia por meio do SUS.
Ubirajara Barroso Jr.
Chefe da Divisão de Cirurgia Urológica Reconstrutora e Urologia Pediátrica do Hospital da Universidade Federal da Bahia, Ubirajara Barroso Jr., realizou a primeira cirurgia afirmativa de gênero no estado pelo SUS, em agosto de 2023. Tem mais de 200 artigos publicados, mais de 20 capítulos de livros, dois livros editados e um livro co-editado, abordando técnicas cirúrgicas inovadoras e novos tratamentos para reconstrução genital e incontinência urinária. É conferencista nacional e internacional.
Além da participação presencial, equipes de saúde do interior, interessadas no encontro, poderão acompanhar as atividades em transmissões ao vivo pelo canal do HUGV no YouTube.
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