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    postado em 01/04/2024 16:36
    Arte 60 anos do golpe - banner

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    Em agosto de 1968, no quarto ano da ditadura militar (1964-1985), a revista Realidade (editora Abril) trazia a reportagem Eles estão com fome, do jornalista pernambucano Eurico Andrade (1939-2005). A matéria, que venceu o Prêmio Esso daquele ano, tratava da situação de subsistência dos trabalhadores rurais da Zona da Mata de seu estado, localizada no mapa da fome das Nações Unidas e

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     onde viviam 1,5 milhão de brasileiros.

    O primeiro personagem do texto é um lavrador chamado Berto Miranda, 45 anos, pai de cinco filhos. Era o começo do dia e ele estava se preparando para ir trabalhar no canavial de um engenho da região, quando a esposa o interpela: “Berto, tu vai levar essa farinha de cuia?” Ele responde devolvendo a indagação: “E

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     eu vou comer o que de almoço?” A mulher encerra o diálogo da penúria: “É

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     que só tinha esse restinho em casa, deixei para os meninos, o que é que se faz?”

    Segundo o repórter Eurico Andrade, Berto Miranda deixou a cuia de farinha em casa. Sem levar a sua enxada, caminhou para o mato. “Antes do meio-dia, os outros lavradores trouxeram o cadáver: Berto se enforcara.”

    No ano daquela reportagem, o Produto Interno Bruto (PIB) cresceu 9,8%. O desempenho extraordinário abriu o chamado “milagre econômico brasileiro”, que durou seis anos e teve uma taxa média de crescimento de 11,2% ao ano. O Brasil da prosperidade econômica

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     fenomenal era o mesmo do flagelo da indigência, mas o progresso miraculoso não chegava a

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     lugares como a Zona da Mata de Pernambuco.

    Antes da tragédia de Berto Miranda e da opulência do PIB, o Brasil já era um país de grandes desigualdades socioeconômicas. O período da ditadura militar, no entanto, tornou superlativas essas disparidades.

    Em 1960, os 5% dos brasileiros mais ricos concentravam 28,3% da renda. Em 1972, a mesma proporção de ricos se apropriava de 39,8% da riqueza produzida no país. Os dados são tirados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), do censo populacional no início dos anos 1960 e da Pesquisa Nacional de Amostra Domiciliar de 1972.

    Naquela período, o índice de Gini pulou de 0,497 para 0,622. O indicador, inventado pelo estatístico italiano Corrado Gini, vai de 0 a 1. Hipoteticamente, o índice em 0 corresponde a nenhuma desigualdade de renda entre as pessoas. O indicador em 1 significa que em tese toda riqueza está concentrada em uma única pessoa. Atualmente, o Gini nacional é 0,492 (renda individual), segundo a Carta de Conjuntura do quarto trimestre de 2023, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

    Política salarial

    Para o sociólogo e economista Marcelo Medeiros, técnico do Ipea e professor visitante na Universidade Columbia (Estados Unidos), “é difícil dizer que a desigualdade atual seja um legado da ditadura militar".

    "Uma parte da desigualdade é herdada da ditadura, mas existe uma parte da desigualdade que a precede. O que a ditadura fez foi bloquear os mecanismos de reversão dessa desigualdade”, afirma Marcelo Medeiros.

    Marcelo Medeiros tem formação em sociologia e economia. Realiza estudos no campo da desigualdade social e é membro da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC). Foto: UNB Notícias/Divulgação
    “É

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     difícil dizer que a desigualdade atual seja um legado da ditadura militar", afirma o sociólogo e economista Marcelo Medeiros

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     - UnB Notícias/Divulgação

    De acordo com o especialista, o regime de arbitrariedade inaugurado em 1º de abril de 1964 “bloqueou as negociações trabalhistas na época". "Bloqueou todas as organizações sociais, criou mecanismos, por exemplo, para desvalorizar o salário mínimo e não deixou os trabalhadores se queixarem disso pelos mecanismos que tinham. Eles destruíram sindicatos. O que a ditadura fez foi desbloquear as condições de reversão da desigualdade.”

    O diagnóstico de Medeiros é semelhante ao do economista Luiz Aranha Correa do Lago, professor pleno da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

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     (PUC-RJ). Em artigo publicado no livro A Ordem do Progresso

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     (editora Elsevier, 2014), ele detalha: “Após 1964, quando ocorreram numerosas intervenções nos sindicatos existentes e o movimento sindical perdeu suas características reivindicatórias, as negociações coletivas com relação a salários passaram a depender, de forma crescente, da aprovação governamental.”

    O resultado da desmobilização forçada dos trabalhadores foi a contenção das remunerações. O poder aquisitivo do salário mínimo caiu em 42% no estado de São Paulo, de acordo com o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese).

    Economista Luiz Aranha Correa do Lago, professor pleno da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ). Foto: Companhia das Letras/Divulgação
    Economista Luiz Aranha Correa do Lago diz que, após 1964, negociações salariais passaram a depender

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     da aprovação governamental - Companhia das Letras/Divulgação

    “No período de 1967-1973, a política salarial e a política de relações trabalhistas do governo tiveram como resultado uma contenção dos níveis de salário real [...]

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     favorecendo a acumulação de capital via manutenção de elevada taxa de lucro

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     e possibilitando uma política de remuneração seletiva para o pessoal de nível mais elevado”, acrescenta Correa do Lago.

    O bolo cresceu

    A acumulação do capital em alguns setores da economia era propósito perseguido pelo governo militar.

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     Para o historiador Jorge Luiz Ferreira, professor da Universidade Federal Fluminense, “as empresas tiveram ganho de produtividade, mas não foi repassado aos trabalhadores".

    "O bolo cresceu, como dizia o Delfim [Netto - ministro da Fazenda de 1967 a 1974], mas ele não foi repartido, ou foi repartido de maneira muito desigual”, destaca o historiador. Conforme Ferreira, “o objetivo era industrializar o país, fazer o país crescer, mas não tinha uma política de redistribuição de renda.”

    O historiador lembra que “havia muitos trabalhadores disponíveis nas cidades que vieram do campo.” A disponibilidade de mão de obra depreciava os salários, e “os empresários demitiam e contratavam outro com facilidade.” O êxodo rural gerou inchaço nas cidades, crescimento das favelas, pauperização da população e deterioração do quadro social. “Aí começam a surgir nas ruas crianças vendendo limão e crianças abandonadas.”

    Cientista político Thiago Aparecido Trindade, professor da Universidade de Brasília (UnB). Foto: UNB/Divulgação
    Para o cientista político Thiago Aparecido Trindade, há

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     semelhanças entre o golpe militar e o impeachment de Dilma Rousseff - UnB/Divulgação

    A abundância de mão de obra nas cidades é reflexo da falta de reforma agrária como previam as reformas de base pretendidas pelo ex-presidente João Goulart, deposto em 1964. O cientista político Thiago Aparecido Trindade, professor da Universidade de Brasília (UnB), assinala que a reforma agrária é uma necessidade ainda presente no Brasil.

    Ele também aponta semelhanças entre o golpe militar contra Jango

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     e o impeachment da presidente Dilma Rousseff. “É muito parecido. Em ambos casos, havia tendência de redução da desigualdade. No fundo, a gente percebe que as decisões que foram tomadas, tanto num caso como no outro, foram elementos decisivos para concentrar a riqueza.”

    O antropólogo Piero Leirner, professor da Universidade Federal de São Carlos e especializado em militares, aponta que a concentração de riqueza seguiu após o milagre brasileiro e o retorno da inflação no crepúsculo da ditadura. “A Inflação, na verdade, foi um mecanismo de concentração de renda. O sistema financeiro protegeu as pessoas mais ricas, que conseguiam, deixar o dinheiro em aplicações, naquelas coisas tipo overnight e tal.”

    A inflação foi uma herança deixada

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     pela ditadura que só foi contornada depois da redemocratização do país no Plano Real. Assim como o endividamento externo. Ambos processos agravaram as desigualdades socioeconômicas. “Contraímos dívida para beneficiar alguns grupos sociais, mas é uma dívida que teve de ser paga por todos. O que foi o endividamento? Foi uma socialização da concentração de renda”, descreve o sociólogo e economista Marcelo Medeiros.

    Para ele, passados quase 40 anos de redemocratização, a desigualdade segue como um problema desafiando o Estado e a sociedade brasileira. “Enfrentar desigualdade implica enfrentar diretamente o conflito distributivo, que significa que algumas pessoas vão perder todas as posições que elas têm hoje. E essa perda de posições, ela gera reações. É óbvio que tem reações de natureza política de várias pessoas –

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     não é só dos ultrarricos. Reações de vários grupos que vão tentar manter suas posições. Antes de tudo, a desigualdade é um problema de natureza política."

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